A constituição do ecossistema de investimentos e negócios de impacto no Brasil é relativamente recente. Diferentemente de outros países do mundo em que os governos criaram estratégias e políticas claras para a estruturação do ecossistema de impacto, o movimento no Brasil se ancorou inicialmente na atuação de organizações pioneiras que entenderam que haviam oportunidades para desenvolver negócios e investimentos orientados a resolução dos desafios sociais do país. Essas organizações construíram as bases para uma mudança de paradigma sobre a possibilidade de conectar o capital privado às demandas sociais. Também foram atores essenciais na busca de sinergias com a agenda governamental para dar escala a essas mudanças, garantindo uma agenda positiva voltada para uma nova economia com impacto socioambiental positivo.
Tratar da cooperação entre governo e sociedade civil na estruturação do ecossistema de investimentos e negócios de impacto não é algo trivial e merece algumas ponderações. Primeiro, é preciso ressaltar que essa cooperação entre governo e sociedade civil sempre vislumbrou a construção e implementação de políticas públicas de apoio ao ecossistema de investimentos e negócios de impacto numa visão de longo prazo, independentemente de projetos políticos que pudessem viabilizar ou inviabilizar essa agenda no curto prazo. Em segundo lugar, em um contexto global em que as bases da democracia estão em crise, a possibilidade concreta da sociedade civil atuar pela implementação de políticas públicas para o setor é por si só um espaço de construção democrática e proteção do espaço cívico, ou seja, aquele espaço em que a sociedade se organiza, debate e influencia a agenda pública 1 .
E por fim, em um país cuja desigualdade social, de gênero, racial, territorial também se reflete na representação política, parece fazer sentido que organizações historicamente comprometidas com as demandas sociais pudessem advogar e ter a possibilidade de influenciar concretamente os rumos da agenda de investimentos e negócios de impacto no país. Neste artigo, partimos do resgate de alguns fatos marcantes dessa cooperação entre sociedade civil e governo na estruturação do ecossistema de investimentos e negócios de impacto e apontamos algumas oportunidades nas quais essa articulação intersetorial tem e terá um papel decisivo a desempenhar nos próximos anos.
A constituição: como tudo começou
A estruturação do que viria a se tornar o ecossistema de investimentos e negócios de impacto no Brasil está conectada com a própria história do terceiro setor no Brasil, especialmente a partir dos anos 2000. Essa é a década em que as organizações sociais, depois de experimentarem uma maior aproximação com o setor empresarial nos anos 90, passam a desenvolver áreas e programas de geração de receitas como estratégia para ampliar a sua sustentabilidade financeira 2 . Pela primeira vez, a combinação entre mecanismos de mercado e a geração de impacto social passa a compor o léxico do setor social no Brasil, demandando novos repertórios, linguagens e atores. É esse o período em que organizações como a Ashoka, que já apoiava empreendedores sociais desde 1986, começa a estimular, em parceria com a consultoria McKinsey, que organizações estruturem suas áreas de geração de renda. Artemisia (2005) e Aliança Empreendedora (2005) surgem neste período também apoiando empreendedores sociais com suas organizações ou negócios.
Num movimento complementar, olhando para oportunidades de investimento de impacto, surge a Vox Capital (2009). Por ser um setor novo, essas organizações tinham a responsabilidade de – além de implementar suas agendas institucionais, seja no apoio à estruturação de negócios ou na atração de investimentos – contribuir diretamente para que esse tema pudesse ser visto e compreendido. No contexto internacional, outros países do mundo já tinham dado passos consistentes na estruturação do setor de investimentos e negócios de impacto. O Reino Unido foi um dos primeiros, ao lançar, em 2000, uma Força Tarefa de Finanças Sociais com o objetivo de apresentar e implementar recomendações para fazer avançar esta agenda. Na mesma direção, o Canadá lançou uma iniciativa semelhante (2010). Em 2013, o primeiro Ministro do Reino Unido, na ocasião David Cameron, convoca os países do G8 a participarem da “Social Impact Investment Taskforce” e gerarem recomendações para seus países catalisando o mercado de investimento de impacto nestes países.
Com inspiração nessas experiências internacionais, em maio de 2014, foi lançada a Força Tarefa Brasileira de Finanças Sociais a partir de uma iniciativa promovida pelo ICE (Instituto de Cidadania Empresarial). Constitui-se assim um grupo intersetorial com o propósito de construir, fomentar e monitorar uma visão de futuro e recomendações comuns para impulsionar esse campo no país. Esta mobilização inicial reuniu um grupo de trabalho composto por 20 organizações conectadas ao tema de Investimentos e negócios de Impacto, entre eles, representantes de empreendedores, investidores, aceleradoras, fundações, e institutos empresariais, banco de desenvolvimento e outras organizações de apoio.
As organizações envolvidas trabalharam durante um ano para mapear e priorizar temas críticos e oportunidades para o crescimento do campo no Brasil, o que gerou uma lista de 15 recomendações para o período entre 2015-2020 e constituiu seu Conselho com lideranças do mercado, governo e sociedade civil reconhecidas por sua atuação. Merece destaque ainda a atuação de fundações e institutos empresariais que tiveram um papel fundamental no financiamento dessas iniciativas nascentes e criaram conexões entre o campo do investimento social privado e os investimentos e negócios de impacto. Até esse momento, nenhuma instância de governo no país tinha qualquer tipo de aproximação com o tema dos investimentos e negócios de impacto.
No entanto, esse grupo de organizações que compunham a Força Tarefa (hoje renomeada Aliança pelos investimentos e negócios de impacto) já entendia que o futuro dessa agenda não poderia prescindir da participação do governo. Essa visão foi declarada na recomendação 13: Integração do Governo Federal na agenda de Finanças Sociais 3 , que recomendava a identificação de uma secretaria vinculada ao Ministério da Fazenda, Planejamento ou Casa Civil que pudesse ser responsável por atuar como ponto focal no acompanhamento e articulação da agenda de investimentos e negócios de impacto, a exemplo do que acontecia em outros países.
A expectativa era de que o governo federal pudesse assumir seu papel como regulador, fomentador e comprador de produtos e serviços de negócios de impacto. A primeira e mais promissora oportunidade de articulação com o governo se deu no âmbito da Secretaria de Inovação do extinto MDIC (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços – hoje a pasta foi assumida pelo Ministério da Economia) que tinha como mandato implementar a política de inovação e novos negócios no país. Em junho de 2016, a Secretaria assina um Acordo de Cooperação Técnica com a Aliança pelo Impact 4o e têm início uma agenda de colaboração que culmina na construção interministerial da Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (Enimpacto), sancionada por decreto presidencial em 2017 5 . A Enimpacto (6) é criada com o objetivo de promover um ambiente favorável ao desenvolvimento de empreendimentos capazes de gerar soluções de mercado (produtos e serviços) para os problemas sociais e ambientais e articular diferentes órgãos de governo, bem como parceiros da sociedade civil, para sua implementação. Como resultado dessa colaboração entre o corpo técnico dos ministérios e as organizações da sociedade civil, a Enimpacto nasceu profundamente inspirada na publicação das recomendações lançadas pela Força Tarefa em 2015.
Com o documento, o governo federal assumiu a responsabilidade compartilhada por promover avanços nos quatro eixos estratégicos (I a IV) mencionados no documento original acrescidos de um eixo transversal (eixo V) e gerar relatórios anuais de acompanhamento.
São eles:
I – Ampliação da oferta de capital para os negócios de impacto;
II – Aumento da quantidade de negócios de impacto;
III – Fortalecimento das organizações intermediárias;
IV – Promoção de um ambiente institucional e normativo favorável aos investimentos e aos negócios de impacto;
V – Fortalecimento da geração de dados que proporcionem mais visibilidade aos investimentos e aos negócios de impacto (eixo transversal) A implementação da estratégia incluiu o convite para atores chave (governos, sociedade civil, sistema S e mercado) atuarem diretamente em torno desses eixos estratégicos num período de 10 anos. Para cada eixo foi criado um Grupo de Trabalho com dois co-líderes (uma organização pública e um representante do setor privado) e outras organizações que têm ligação com o tema. Atualmente, são 38 organizações atuando nos grupos de trabalho numa extensa agenda de colaboração com o governo federal.
O lançamento da Enimpacto foi uma iniciativa pioneira no mundo e serviu como exemplo internacional mesmo para países que já tinham saído na frente na estruturação do ecossistema. Nacionalmente, um dos principais resultados dessa atuação do governo federal foi o efeito demonstrativo sobre o papel que as instituições governamentais poderiam assumir na estruturação do ecossistema de impacto. Com isso, a partir de 2020, governos estaduais e municipais somados a grupos locais envolvendo organizações da sociedade, escritórios regionais do Sebrae (Serviço Nacional de Apoio a Micro e Pequenas Empresas), entre outros, assumiram a liderança em seus territórios e criaram estratégias supranacionais de investimentos e negócios de impacto. Até abril de 2022, seis estratégias estaduais já haviam sido aprovadas – Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraíba, Ceará, Alagoas, Rio Grande do Norte – e Distrito Federal.
A partir dessa mobilização supranacional a atuação do governo federal entra em uma nova fase com a estruturação do SIMPACTO (Sistema Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto). O Simpacto deverá ser um instrumento de articulação dos três níveis federativos do poder público que, em cooperação também com atores privados, visa promover a dinamização dos negócios e investimentos de impacto no Brasil. Ele objetiva garantir o alinhamento terminológico e conceitual, potencializar iniciativas e a atuação sinérgica entre atores locais. Esses avanços do envolvimento do governo federal na agenda de impacto parecem indicar que os objetivos daquele grupo pioneiro de organizações da sociedade civil, que em 2015 recomendou o engajamento do governo federal, foram alcançados.
No entanto, parece igualmente claro que a atuação da sociedade civil e do setor privado continuará tendo um papel fundamental em advogar por novas políticas públicas e pela implementação de ações que conduzam a mudanças sistêmicas no setor. O que vem agora?
Oportunidades a partir da Simpacto e da Enimpacto
Finalizado o primeiro ciclo de implementação das recomendações (2015-2020), a Aliança lançou uma visão de futuro para o ecossistema de investimentos e negócios de impacto com 09 recomendações para ação até 2025 (7) . Foi a partir do processo de construção das recomendações – com a identificação de barreiras e oportunidades para fortalecimento da agenda – que selecionamos algumas ações que a Simpacto e a Enimpacto podem contribuir nos próximos anos.
1. Estruturação de ecossistemas locais de impacto
A fase inicial de estruturação do ecossistema de impacto buscou fortalecer o setor a partir de ações nacionais. Essa orientação garantiu importantes resultados nos últimos 05 anos (8) . No entanto, num país continental e diverso como o Brasil essa estratégia não foi capaz de reduzir as disparidades regionais de acesso à capital, recursos humanos e tecnológicos. É aí que as estratégias governamentais supranacionais voltadas ao fortalecimento do ecossistema de investimentos e negócios podem contribuir. Nesse sentido, a estruturação do Simpacto é uma grande aposta para garantir o alinhamento nacional dessas políticas públicas, ampliar o repertório dos gestores públicos locais sobre o tema e criar espaços de troca e colaboração entre os atores envolvidos nessas iniciativas.
2. Legislações e cenário regulatório
Historicamente, o campo dos investimentos e negócios de impacto no Brasil ainda carece de regulações e legislações que possam facilitar o fluxo de recursos entre quem empreende e quem investe com impacto. A Enimpacto, por meio do GT 4, é quem tem estruturado ações nesse sentido. A atuação do grupo será essencial para que nos próximos anos o setor possa avançar com as propostas em andamento junto ao legislativo como o projeto de lei que prevê a qualificação jurídica de negócios de impacto, bem como, leis específicas sobre a inclusão de critérios de impacto em compras públicas e o pleito de incentivos fiscais. Outro tema que precisa ser trabalhado são as regulamentações para que institutos corporativos e fundações possam ter mais segurança para investir e/ou doar para a estruturação de negócios de impacto. Essas organizações poderiam financiar os primeiros passos da criação de negócios de impacto/protótipos com potencial de serem incorporados pelo governo em seus processos de compras caso os seus resultados sejam positivos. Atualmente, a falta de pareceres favoráveis neste sentido, tem sido uma barreira para a mobilização de mais capital de institutos e fundações para o campo.
3. Oferta de produtos financeiros de impacto
Apesar de alguns avanços nos últimos anos, a oferta de produtos financeiros comprometidos com o impacto ainda precisa ser ampliada no país, esse é justamente um dos focos prioritários do GT1 da Enimpacto. O comprometimento dos gestores(as) públicos(as) – bancos públicos e agências de fomento – com a estruturação de fundos próprios ou que possam ser combinados com capital privado para o fomento de negócios de impacto pode ter um resultado significativo na oferta de capital disponível no campo nos próximos anos.
4. Fomento à dinamizadores de impacto
Dinamizadores são atores/organizações que apoiam a jornada de empreendedores(as) e investidores(as) que atuam com impacto socioambiental. Eles oferecem acesso à redes, formação, conexão e conteúdos de referência. São exemplos desses dinamizadores: aceleradoras, incubadoras, instituições de ensino, entre outros. O salto em escala que o campo de impacto vai necessitar nos próximos anos vai requerer mais investimentos públicos e privados em organizações dinamizadoras. O governo federal mesmo que com grandes desafios e recursos limitados, há mais de 30 anos tem construído a infraestrutura de fomento à inovação e ao empreendedorismo no país, apostando em seu papel estratégico no desenvolvimento econômico e territorial. Ao apoiar organizações dinamizadores do ecossistema de impacto, gestores públicos podem contribuir para aprofundar a perspectiva de impacto socioambiental dos empreendimentos nascentes e dar uma contribuição mais intencional para a resolução dos desafios sociais e ambientais.
Para finalizar este artigo vale destacar que ao resgatar a trajetória percorrida para a estruturação do ecossistema no Brasil e as oportunidades futuras para o avanço do setor, fica evidente que a construção de uma nova economia com impacto positivo demanda atribuirmos novos significados aos papéis do governo, do setor privado e da sociedade civil numa visão de complementaridade. Nesse sentido, o setor privado e a sociedade civil têm muito a contribuir com o governo na resolução dos desafios sociais, sem que isso represente assumir o papel do estado na garantia de direitos e na realização de investimentos públicos e vice-versa.
Ao governo cabe ampliar o seu atual papel de catalisador de investimentos e fomentador de políticas de interesse público e criar mecanismos de compras para esses negócios, destravando programas que conectem negócios de impacto a desafios públicos. Será fundamental ainda prover mais entendimento sobre o tema aos seus órgãos de fiscalização e controle e garantir que gestores públicos tenham segurança jurídica e arcabouço legal para avançar com parcerias e compras.
Ao setor privado, vale aproveitarmos a sua capacidade de inovação e eficiência para gerarmos negócios de impacto e re-orientarmos o fluxo de capital para co-investir junto com o governo em iniciativas orientadas para geração de impacto positivo. E finalmente, devemos celebrar a capacidade de cooperação, visão de longo prazo e espírito público das organizações da sociedade civil que tem construído o capital social que dá sustentação ao ecossistema de investimentos e negócios de impacto no Brasil
Por Vivian Rubia e Célia Cruz
Aliança pelos Investimentos e Negócios de Impacto Instituto de Cidadania Empresarial – ICE
Notas
1 Conceito de Espaço Cívico: https://igarape.org.br/o-espaco-civico-e-o-nosso-espaco-uma-agenda-de-protecao-da-democracia/
2 Naigeborin, Viviane. O Papel das Organizações da Sociedade Civil na Criação e no Desenvolvimento de Negócios de Impacto Social. In: Negócios com Impacto Social no Brasil. 2013. Ed.Peirópolis
3 Acesse o documento: “Finanças Sociais: Soluções Para Desafios Sociais e Ambientais”. Disponível em: https://aliancapeloimpacto.org.br/wp-content/uploads/2020/02/financas-sociais-solucoes.pdf
4 Na época ainda nomeada como Força Tarefa de Finanças Sociais.
5 Decreto nº 9.244/17
6 Confira mais informações sobre a Enimpacto: https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/assuntos/inovacao/enimpacto
7 Leia mais em: “Visões de Futuro para a agenda de impacto no Brasil”: https://aliancapeloimpacto.org.br/wp-content/uploads/2021/03/alianca-interativo.pdf
8 Leia o relatório de resutados 2015-2020 em: https://aliancapeloimpacto.org.br/wp-content/uploads/2020/12/2020-relatorioalianca-15-20-v09.pdf